sexta-feira, 9 de março de 2012

Capítulo 4 - On the Road


4

A mais incrível carona de minha vida estava prestes a surgir; um caminhão que tinha uma plataforma de madeira atrás e cinco ou seis caras esparramados por cima; os motoristas, dois jovens agricultores loiros do Minnesota, estavam recolhendo toda e qualquer alma solitária que encontrassem por aquela estrada — formavam a mais simpática, sorridente e jovial dupla caipira que se pode imaginar, os dois de macacão, camiseta e nada mais, ambos ágeis e com pulsos grossos, e um amplo sorriso de “cuméquitá?” resplandecendo para todos os que cruzassem pelo caminho deles. Eu corri, perguntei: — Tem lugar pra mais um? — Eles disseram: — Claro, suba, tem lugar pra todo mundo.
Eu mal subira na caçamba quando o caminhão arrancou zunindo; cambaleei, um caroneiro me agarrou, e eu me sentei. Alguém me passou uma garrafa com uma bebida forte como veneno, o último gole dela. Tomei um bom trago no ar selvagem, lírico e chuvoso do Nebraska. — Iuúpii, lá vamos nós! — gritou um garoto com um chapéu de beisebol, e eles fizeram o caminhão disparar a cento e vinte quilômetros por hora, e ultrapassavam todo mundo na estrada. — A gente está neste caminhão de merda desde Des Moines. Esses caras não param jamais. Às vezes, a gente tem que gritar durante horas para que eles nos deixem dar uma mijada. Senão, a gente é obrigado a mijar no vento, e aí tem que se segurar, meu irmão, se segurar mesmo. Olhei para a tripulação. Havia dois jovens lavradores de Dakota do Norte, com bonés de beisebol vermelhos — que é o chapéu-protótipo de todos os
jovens agricultores de Dakota do Norte —, e eles iam em direção às colheitas; o velho deles os deixara cair na estrada durante o verão inteiro. Havia dois garotos urbanos de Columbus, em Ohio; jogavam futebol no time da escola, mascavam chicletes, pestanejavam, cantarolavam com os cabelos ao vento, e disseram que estavam aproveitando o verão para viajar de carona pelos Estados Unidos. 
— A gente está indo para Los Angeles — berraram.
— O que vão fazer lá? 
— Porra, a gente não tem a menor idéia. Que diferença faz?
Havia ainda um sujeito alto e magro, com um olhar furtivo. — De onde você é? — perguntei. Eu estava deitado junto a ele na plataforma; não havia cercas de proteção nem nada, era impossível sentar sem ser cuspido fora. Ele se virou vagarosamente, abriu a boca e disse: — Mon-ta-na. Finalmente, ali estava também Mississipi Gene e seu fardo. Mississipi Gene era um cara moreno e mirrado, que saltava nos trens de carga por todos os cantos do país; um vagabundo de trinta anos, mas com aparência muito mais jovem — na verdade, era quase impossível dizer com certeza sua idade real. Sentava-se sobre as tábuas corridas da caçamba, com as pernas cruzadas, um olhar sereno e distante perdido na imensidão das planícies, sem dizer uma só palavra durante centenas de quilômetros, até que, finalmente, em determinado momento, virou-se para mim e perguntou: 
— Para onde você está indo?...
— Denver — eu disse.
Tenho uma irmã lá, mas faz muitos anos que não a vejo. — Sua fala era pausada e melodiosa. Era um sujeito paciente. Seu fardo era um alto garoto loiro de dezesseis anos, igualmente envolto em trapos, quer dizer, ambos vestiam roupas surradas de andarilhos, escurecidas pela fuligem das locomotivas, pela imundície dos vagões de carga, por incontáveis noites sob as estrelas. O garoto loiro também era do tipo silencioso, e parecia estar fugindo de alguma Coisa; a julgar pela maneira como umedecia os lábios, com um ar preocupado, sempre olhando para- a frente; é provável que seu problema fosse com os homens da lei. Montana Slim falava com os outros ocasionalmente, sempre com um sorriso insinuante e sarcástico. Eles não lhe davam bola. Slim era todo insinuações. Eu estava apreensivo com seu largo sorriso calhorda, que ele escancarava à sua frente e deixava suspenso ali, como se fosse meio abobado. 
— Tem algum dinheiro aí?
— Porra, não tenho. Talvez só o suficiente para um trago de uísque até chegar a Denver. E você?
— Sei onde conseguir.
— Onde?
— Em qualquer lugar. Sempre dá para. arrochar alguém num beco qualquer, não é?
— É verdade.
— Não vacilo muito quando estou mesmo a fim de arranjar um trocado. Rumo a Montana, para ver meu velho. Vou saltar desta barca em Cheyenne e dar um jeito de subir até lá. Estes dois estão indo para Los Angeles.
— Sem escala?
— É isso aí, direto e sem escala. Se você está a fim de ir para L.A., acaba de conseguir uma carona.
Cogitei essa possibilidade. A idéia de voar através do Nebraska e do Wyoming noite adentro, amanhecer no ar abafado do deserto de Utah, ver as cores do fim de tarde esparramando-se no deserto de Nevada, e chegar a Los Angeles num prazo bastante previsível, quase me fez mudar de planos. Mas eu tinha que ir para Denver. Por Isso, também teria de saltar em Cheyenne, e dali pagar uma carona para o sul, uns cento e cinqüenta quilômetros mais ou menos. Fiquei contente quando os dois colonos de Minnesota, que eram donos do caminhão, decidiram dar uma parada em North Platte para comer. Queria saber qual era a deles. Saltaram da cabina e sorriram para todos nós: — Hora de dar uma mijadinha — disse um. — Hora de comer — disse o outro. Só que eles eram os únicos na festa com dinheiro suficiente para comprar comida. Todo mundo se arrastou atrás deles para dentro de um restaurante, dirigido por um bando de mulheres, e nos sentamos entre hambúrgueres e xícaras fumegantes de café, enquanto eles devoravam enormes pratos-feitos como se tivessem retornado à cozinha de sua mãe. Eram irmãos, transportavam máquinas agrícolas de Los Angeles para Minnesota e faziam um bom dinheiro com isso. Por isso, em sua viagem para a costa, quando estavam sem carga, davam carona a todos os que iam encontrando pela estrada. Já tinham feito umas cinco viagens, era trabalho pesado. Mas eles gostavam de tudo, jamais desmanchavam aquele sorriso luminoso. Tentei puxar conversa, era uma idéia estúpida de minha parte querer fazer amizade com os capitães do nosso navio — e as únicas respostas que recebi foram dois sorrisos ensolarados, adornados por largos dentes radiantes, criados a milho.
Todos os seguiram ao restaurante, menos os dois jovens vagabundos, Gene e seu garoto. Quando retornamos, eles ainda estavam sentados no caminhão, solitários e soturnos. A noite estava caindo. Os dois garotos do caminhão fumavam; decidi aproveitar a chance para comprar uma garrafa de uísque e me manter aquecido no gélido e ventoso ar noturno. Eles sorriram quando lhes falei sobre isso. 
— Vá em frente, não perca tempo.
— Na volta dou uns goles para vocês — tranqüilizei-os.
— Oh, não. A gente não bebe jamais. Vá firme.
Montana Slim e os dois atletas escolares perambularam comigo pelas ruas de North Platte, até que encontrei um boteco qualquer. Eles contribuíram com um pouco, Slim outro pouco, e eu pude comprar quase um litro. Homens altos e taciturnos nos observavam passar, plantados em frente a pequenos edifícios de fachada postiça; na rua principal se alinhavam uns chalés retilíneos e empertigados. Para além de cada rua melancólica, descortinavam-se vistas imensas das planícies. Senti algo estranho no ar de North Platte, e não sabia bem o que era. Em cinco minutos eu saberia. Voltamos para o caminhão e caímos fora. Escureceu num instante. Todos tomaram um trago e, de repente, olhei para os lados, os campos verdejantes das fazendas do Platte começaram a desaparecer, e no lugar surgiram achatados e amplos desertos de areia e arbustos ressequidos, que se esparramavam tão longe quanto os olhos pudessem alcançar. Fiquei estarrecido.
— Que porra é isso, homem? — perguntei a Slim.
— Este é o começo das pradarias, garoto. Me passe outro trago.
— Iuuúpii! — gritaram os colegiais. — Tchau, Columbus! O que Sparkie e os garotos diriam se estivessem aqui! Uau!
Os motoristas tinham se revezado, e o irmão mais moço acelerava o caminhão até a velocidade máxima. A estrada mudou também: calombos na pista, acostamentos estreitos com valões de um metro e meio de fundura de ambos os lados, e o caminhão corcoveava de um lado para o outro da estrada — milagrosamente, apenas quando não havia nenhum carro vindo na direção oposta —, e eu pensei que iríamos acabar dando um salto mortal. Mas eles eram exímios motoristas. E sabiam fazer aquele caminhão se desviar dos calombos do Nebraska — calombos que se prolongavam até o Colorado. Então, percebi que finalmente eu já estava em Colorado, ainda não oficialmente, mas podia pressentir Denver a apenas algumas centenas de quilômetros a sudoeste dali. Gritei de tanta felicidade. A garrafa circulava. O céu se povoou de magníficas estrelas resplandecentes. As distantes colinas arenosas se obscureceram. Sentia-me veloz como uma flecha, capaz de vencer todas as distâncias.
De repente, Mississipi Gene se virou para mim interrompendo seu transe contemplativo de pernas cruzadas, moveu os lábios, se aproximou e disse: — Essas planícies me fazem lembrar o Texas. — Você é do Texas?
— Não, senhor, sou de Green-vell, Muzz-sippy. — E foi bem assim que ele falou.
— E o menino, de onde é?
— Ele se meteu em encrencas lá no Mississipi, então me ofereci para ajudá-lo. Jamais rodou sozinho por aí. Tomo conta dele da melhor forma que posso. É apenas uma criança. — Embora Gene fosse branco, havia nele algo da sabedoria de um velho negro experiente, e algo que lembrava demais Elmer Hassel, o viciado de Nova York, mas era como se fosse um Hassel das estradas de ferro, um épico Hassel andarilho, que cruzasse e tornasse a cruzar a nação anualmente, curtindo o sul no inverno, imigrando para o norte no verão, apenas porque não havia nenhum lugar onde pudesse permanecer sem cair no tédio, e também porque não havia lugar algum para ir senão todos os lugares, rodando sempre sob as estrelas, especialmente as estrelas do oeste. 
— Estive em Ogden algumas vezes. Se você quiser ir até lá, tenho alguns amigos com quem a gente pode se juntar.
— De Cheyenne, estou indo para Denver.
— Porra, siga direto de uma vez. Não é todo dia que a gente pega uma carona como esta. Ali estava mais uma proposta tentadora. O que havia de tão bom em Ogden?
— O que é Ogden? — perguntei.
— É o lugar onde a maioria dos rapazes passa, e sempre se encontram; você é capaz de achar qualquer um lá.
Na juventude, eu estivera em alto-mar em companhia de um sujeito alto e esquelético de Louisiana, chamado Big Slim Hazard, William Holmes Hazard, um vagabundo por opção. Quando criança, tinha visto um vagabundo se aproximar para pedir um pedaço de torta à sua mãe, e ela o deu, e quando o vagabundo sumiu na estrada, o garoto, ainda pequeno, perguntou: — Mãe, quem era esse homem? — Ora, um vagabundo. — Mama, quando crescer também quero ser vagabundo. — Não diga bobagens, menino. Um Hazard não nasceu para isso. — Mas ele jamais esqueceu aquele dia, e quando cresceu, depois de jogar futebol durante uma curta temporada na LSU, se tornou, de fato, um vagabundo. Big Slim e eu passamos muitas noites contando histórias e cuspindo pedaços de tabaco mascado em sacos de papel. Havia reminiscências tão indubitáveis de Big Slim Hazard nos devaneios de Mississipi Gene, que resolvi perguntar: 
— Nunca cruzou com um cara chamado Big Slim Hazard por aí? E ele respondeu: — Aquele sujeito alto, com uma risada sonora?
— É, parece ele. Nasceu em Ruston, Louisiana.
— É isso aí! Às vezes o chamavam de Louisiana Slim. Sim, senhor, é claro que conheço Big Slim.
— Ele trabalhava nos poços de petróleo do leste do Texas?
— No leste do Texas, está certo. E agora lida com gado em alguma fazenda por aí.
E era exatamente isso; mas ainda não conseguia acreditar que Gene realmente conhecesse Slim, que durante anos eu estivera procurando.
— E ele também já trabalhou nos rebocadores em Nova York?
— Bem, sobre isso nada sei.
— Vai ver que você só o conheceu no oeste.
— Certo! Na verdade, jamais estive em Nova York.
— Puxa vida, estou surpreso que você o conheça. Este país é enorme. No entanto, tinha certeza de que você deveria conhecê-lo. Acredite, conheço Big Slim bastante bem. Sempre generoso com sua grana, quando tem alguma. Quer dizer, um cara valente, também. Vi Slim desmontar um guarda nos arredores de Cheyenne, com um único soco. — Isso soava a Big Slim; ele estava sempre cortando os ares com esse soco definitivo. Parecia Jack Dempsey, mas um Jack Dempsey jovem e alcoólatra. — É demais! — gritei, envolto pela brisa, e tomei outro trago, e agora realmente estava me sentindo maravilhosamente bem. Cada gole era enxugado sob o vento esvoaçante de um caminhão sem capota, enxugado de seus efeitos maléficos enquanto o efeito bom afundava em meu estômago. — Cheyenne, lá vou eu! — cantarolei. — Ei, Denver, prepare-se para receber este garoto! Montana Slim se virou para mim, apontou para meus sapatos e comentou: — Você não acha que isso aí dava um bom adubo? — sem um traço de riso, é claro, e a rapaziada ouviu e gargalhou. Eram os sapatos mais ridículos de toda a América. Trouxe-os comigo especificamente porque não queria que meus pés suassem na estrada abafada e, a não ser pela chuva em Bear Mountain, eles demonstraram ser os melhores sapatos possíveis para minha viagem. Assim, também ri com eles. O sapato já estava roto e desgastado, soltava tiras coloridas como um abacaxi maduro, e desnudava meus dedos. Bem, bebemos mais um gole e gargalhamos. Como num sonho, passamos por minúsculas cidades de beira de estrada cintilando na escuridão, e por longas filas de mãos camponesas ociosas e cowboys noturnos. Eles nos observavam passar num rápido meneio de cabeça, e nós os víamos comprimindo suas coxas através da escuridão espessa do outro lado da cidade — formávamos uma equipe muito louca.
Muitos homens estavam na região naquela estação do ano — era a época das colheitas. Os garotos de Dakota ficaram irrequietos. — Acho que vamos saltar na próxima parada para mijar, parece que tem um monte de trabalho por aqui.
— O negócio é ir seguindo para o norte quando a colheita for acabando nesta região — aconselhou Montana Slim —, e continuar colhendo até chegar ao Canadá. — Os garotos concordaram sem muito entusiasmo, mas não os impressionou muito esse conselho.
Enquanto isso, o jovem fugitivo loiro continuava sentado daquele mesmo jeito; vez por outra, Gene abandonava seu transe budista por cima das esvoaçantes planícies sombrias, e sussurrava afetuosamente ao ouvido do garoto. O menino assentia. Gene estava combatendo sua melancolia e seus temores. Eu me perguntava onde eles iriam se meter, e o que fariam. Não tinham nem cigarros. Eu esbanjava meu maço com eles. Estava apaixonado por eles. Eram agradáveis e encantadores. Jamais pediam, mas eu continuava oferecendo. Montana Slim tinha seus próprios cigarros, mas nunca passava o maço. Zunimos através de outra cidade de beira de estrada, cruzamos mais uma fila de homens altos e esguios que vestiam jeans, agrupados sob a luz pálida como mariposas no deserto, e reingressamos na escuridão absoluta; as estrelas sobre nossas cabeças eram puras e reluzentes, por causa do ar progressivamente rarefeito à medida que nos elevávamos para o topo do platô do oeste, quase meio metro por quilômetro — pelo menos, é o que eles diziam —, e em momento algum havia árvores escondendo as estrelas na linha do horizonte. E cheguei a ver uma vaca
mal-humorada, com a cara branca parada à beira da estrada, enquanto deslizávamos para longe. Era como viajar de trem, absolutamente seguro e estável.
De vez em quando, passávamos por uma cidade, reduzíamos a velocidade e Montana Slim dizia: — Ah, hora de fazer xixi —, mas os caras de Minnesota não paravam e nós cruzávamos direto. — Porra, tenho que mijar — disse Slim. — Dê uma chegadinha ali no canto — sugeriu alguém. — Bem, eu vou mesmo — disse ele, e lentamente, enquanto nós todos observávamos, dirigiu-se de cócoras para a parte de trás da caçamba, equilibrando-se o melhor que podia, até que suas pernas bambolearam. Alguém bateu na janela da cabina para chamar a atenção dos irmãos. Seus sorrisos amplos reluziram quando eles se viraram. E no instante em que Slim estava pronto para entrar em ação, cauteloso como tinha sido até então, eles começaram a ziguezaguear o caminhão a uns cento e vinte quilômetros por hora. Ele caiu por um momento, e nós vimos o esguicho de uma baleia dançar no ar, ele se esforçou e conseguiu se acocorar outra vez. Eles gingavam o caminhão. Brumm, finalmente ele caiu de lado e se molhou todo. Sob o ronco do motor, podíamos ouvi-lo praguejar debilmente, como o lamento distante de um homem ao longe, através das colinas. — Merda... merda... — Ele nem percebera que havíamos feito aquilo propositadamente; apenas se esforçava, com uma careta digna de Jó. Quando havia acabado, literalmente, estava totalmente molhado, e tinha agora que traçar sua trêmula trajetória de retorno, com a cara mais lastimável do mundo, e todos gargalhavam, inclusive os caras de Minnesota, na cabina, menos o tristonho garoto loiro. Estendi-lhe a garrafa, para que se refizesse.
— Que merda — disse —, eles estavam fazendo isso de propósito?
— Certamente.
— Porra, eu nem imaginava! Em Nebraska não tive tanta dificuldade para fazer a mesma coisa.
Subitamente, chegamos à cidade de Ogallala, e ali nossos camaradas da cabine gritaram: — Hora de fazer xixi —, repletos de imensa satisfação. Slim parou taciturnamente ao lado do caminhão, lamentando a oportunidade que havia perdido. Os dois garotos de Dakota deram adeus para todos, e eu imaginei que eles começariam a colheita ali mesmo. Nós os vimos desaparecer dentro da noite, em direção às cabanas na periferia da cidade, onde luzes cintilavam e os vigilantes noturnos de jeans decidiam quem seria contratado. Eu tinha de comprar mais cigarros. Gene e o garoto loiro me seguiram, para esticar as pernas. Dirigi-me ao lugar mais inverossímil do mundo, uma espécie de bar solitário das planícies, construído para os garotos locais e meninas adolescentes. Eles estavam dançando, uns poucos, ao som de uma vitrola automática. Quando entramos, houve um silêncio constrangedor. Gene e o Loiro apenas deram uma parada, sem olhar para ninguém; tudo o que desejavam eram cigarros. Mas havia também umas garotas bonitas por ali. E uma delas pôs os olhos no Loiro, ele nem notou, e se notasse não teria ligado, a tal ponto estava triste e distante. Comprei um maço para cada um deles, que me agradeceram. O caminhão estava pronto para partir. Era quase meia-noite agora, e fazia frio. Gene, que já havia cruzado o país mais vezes do que poderia contar nos dedos dos pés e das mãos, explicou que o melhor que tínhamos a fazer era entrarmos sob uma grande lona, caso contrário iríamos congelar, e assim, ainda contando com o resto da garrafa, nos conservamos aquecidos, enquanto o ar uivava, cada vez mais gélido, em nossos ouvidos. Quanto mais subíamos as High Plains, mais radiantes ficavam as estrelas. Agora, já estávamos no Wyoming. Deitado de costas, eu olhava fixamente para o esplêndido firmamento, deliciando-me com aqueles momentos, pensando em como ficara distante a desolada Bear Mountain, e excitadíssimo só de pensar no que me aguardava lá adiante, em Denver — o que quer que fosse. Mississipi Gene começou a cantarolar uma canção. Cantava com a voz calma e melodiosa, com um sotaque caipira, e era uma canção simples, apenas: — “Tenho uma garota que vibra, ela é uma adolescente gostosa, a coisa mais vibrante que você já viu”; — repetia esse refrão e misturava outras frases no meio, falando que estivera muito longe e gostaria de voltar para ela, mas tinha-a perdido para sempre. Eu disse: 
— Gene, que canção maravilhosa!
— É a mais linda que conheço — ele respondeu com um sorriso.
— Espero que você chegue aonde pretende, e seja feliz lá.
— De um jeito ou de outro, sempre acabo me dando bem. Montana Slim estava adormecido. Acordou e me disse: 
— Ei, Moreno, que tal você e eu curtirmos Cheyenne juntos esta noite, antes de você se mandar para Denver?
— Claro, claro. — Eu estava bêbado o suficiente para encarar qualquer coisa.
Enquanto o caminhão penetrava nos subúrbios de Cheyenne, podíamos perceber as luzes avermelhadas das antenas da estação de rádio local, e repentinamente lá estávamos nós, aos solavancos, entre uma verdadeira multidão, que se esparramava por ambos os lados da rua, lotando as calçadas. — Raios, é o Festival do Oeste Selvagem — disse Slim. Multidões de executivos barrigudos, com chapéus enormes e botas texanas, e com suas pesadas esposas vestidas de cowboy, percorriam as calçadas de madeira da velha Cheyenne, barulhentos e afobados. Lá longe, reluzia a luz viscosa dos bulevares do centro novo de Cheyenne, mas a celebração concentrava-se na parte velha. Estouravam tiros de festim. Os saloons estavam abarrotados até a calçada. Eu estava surpreso, mas ao mesmo tempo percebia que aquilo tudo era profundamente ridículo: em minha primeira investida no oeste, estava vendo a que estratagemas absurdos eles recorriam para manter viva sua orgulhosa tradição. Tivemos de saltar do caminhão e nos despedir de todos. Os garotos de Minnesota não estavam interessados em curtir o ambiente. Foi triste vê-los partir; percebi que jamais voltaria a rever qualquer um deles, mas a estrada era assim mesmo.
— Vocês vão ficar gelados até o eu esta noite — avisei —, e torrados, no deserto, amanhã à tarde.
— Por mim tudo bem, contanto que a gente se livre desta noite gelada — disse Gene. E o caminhão arrancou, abrindo caminho entre a multidão, sem que ninguém prestasse atenção na excentricidade dos garotos sob a lona, observando a cidade como se fossem bebês sob as cobertas. Observei-os desaparecer dentro da noite.



Capítulo 3 - On the Road


3

Foi uma viagem ordinária, com bebês chorões e sol escaldante, e caipiras que embarcavam cada vez que o ônibus parava em tudo quanto é cidade da Pensilvânia, até que atingimos as planícies de Ohio, e então realmente as rodas rodaram, direto até Ashtabula e rasgando Indiana noite adentro. Minha chegada a Chicago ocorreu pouco depois da aurora, arranjei um quarto na ACM e caí na cama com uns poucos trocados no bolso. Curti Chi depois de um reconfortante dia de sono.
O vento que vinha do lago Michigan, bop-jazz no Loop, longas caminhadas ao redor de South Halsted e North Clark e, na madrugada silenciosa, uma longa jornada pela selva de pedra, quando uma radiopatrulha me seguiu como suspeito. Nessa época, 1947, o bop enlouquecia a América. Os rapazes no Loop seguiam soprando, mas com um ar melancólico, porque o bop atravessava um momento indeciso entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era, que começou com Miles Davis. E, enquanto eu ouvia aquele som noturno que o bop representava para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação, e em como todos eles viviam frenéticos e velozes, dentro dos limites de um único e imenso quintal. Na tarde seguinte, segui para o oeste pela primeira vez em minha vida. Era um lindo dia ensolarado, perfeito para cair na estrada. Fugindo da impossível complexidade do tráfego de Chicago, peguei um ônibus até Joliet, Illinois, tangenciei a penitenciária de Joliet, escapei em direção à periferia da cidade depois de uma caminhada por suas minúsculas ruas frondosas, e deixei que meu dedo apontasse o caminho. De ônibus — todo o
percurso de Nova York até Joliet, e eu tinha gasto mais da metade de minha grana.
A primeira carona foi num caminhão carregado de dinamite, com bandeira vermelha e tudo, uns cinqüenta quilômetros pela esverdeada amplitude do Illinois, sendo que o caminhoneiro apontou o lugar onde a Rota 6, onde a gente estava, se juntava com a Rota 66, antes de ambas mergulharem nas inacreditáveis distâncias do oeste. Por volta das três da tarde, depois de uma torta de maçã e um sorvete num bar de beira de estrada, uma mulher parou seu pequeno cupê para mim. Corri atrás do carro num arrepio de intensa satisfação. Mas era apenas uma mulher de meia-idade, que até podia ser minha mãe, e tudo o que queria era alguém para ajudá-la a dirigir até Iowa. Iowa! Que jóia! Não ficava muito longe de Denver, e assim que eu chegasse a Denver poderia descansar. Ela dirigiu as primeiras e poucas horas, chegando a parar sei lá onde, para visitarmos uma velha igreja qualquer como se fôssemos turistas, e só depois peguei a direção; mesmo não sendo um grande motorista, dirigi numa ótima, cruzando o restante do Illinois até Davenport, Iowa, via Rock Island. E foi então que vislumbrei pela primeira vez meu querido rio Mississipi, raso sob a bruma do verão, quase seco, exalando o odor de sua fertilidade, que cheira como o próprio corpo vivo da América, lavada por ele. Rock Island, trilhos de trem, barracos, o insignificante centro da cidade e, do outro lado da ponte, Davenport, o mesmo clima, o mesmo cheiro de serragem sob o sol abafado do meio-oeste. E então a mulher teve que seguir por- outra estrada até sua cidade natal em Iowa, e eu saltei fora.
O sol se punha, eu andava, tinha bebido umas cervejas geladas, ia em direção aos arrabaldes da cidade, foi uma longa caminhada. Os homens voltavam do trabalho para casa, usavam chapéus de ferroviários, chapéus de beisebol, todos os tipos de chapéus, como depois do expediente em qualquer cidade de qualquer lugar. Um deles me deu uma carona até o topo de uma colina, e me deixou numa vasta encruzilhada, isolada na beira da pradaria. Que lugar esplêndido! Os únicos carros que passavam eram carros de fazendeiros, eles me
lançavam olhares desconfiados e zuniam no descampado, o gado ia para casa. Nem ao menos um caminhão. Somente uns poucos carros, sibilantes. Um garotão passou com sua caranga envenenada e o cachecol esvoaçante. O sol se pôs completamente, e eu estava lá, de pé, envolto pelas sombras púrpura. Fiquei realmente com medo. Não havia uma única luz nos campos de Iowa, em um minuto eu não seria visto por mais ninguém. Felizmente, um sujeito que voltava a Davenport me deu uma carona até o centro da cidade. Só que ali estava eu, de volta ao ponto de partida.
Fui sentar na rodoviária e refletir sobre minha situação. Devorei outra torta de maçã e mais um sorvete — na verdade, esses foram praticamente os únicos alimentos que comi em minha viagem através do país, embora sejam deliciosos, além de nutritivos, é claro. Decidi arriscar. Peguei um ônibus no centro de Davenport, depois de passar meia hora paquerando a garçonete no bar da rodoviária, e retornei aos limites da cidade, mas dessa vez para a proximidade dos postos de gasolina. Ali, os grandes caminhões roncavam, vrumm, e em dois
minutos um deles parou aos solavancos para me apanhar. Corri, exultante. E que caminhoneiro, homem! Um motorista enorme, maciço e robusto, com olhos esbugalhados e uma voz rouca e arranhada, daqueles que batem a porta com violência e pisam fundo, fazendo a máquina rodar sem dar a menor bola para mim. E, assim, pude descansar meu espírito fatigado, já que um dos maiores tormentos de se viajar de carona é ter de falar com incontáveis pessoas, distraí-las até que elas percebam que não cometeram um erro ao apanhar você, e isso resulta num esforço enorme, se o percurso é longo e você não está a fim de dormir em hotéis. O cara simplesmente berrava, mais alto do que o ronco do motor, e tudo o que eu tinha a fazer era gritar uma resposta, e assim relaxamos. Ele deixou aquele monstrengo rolar até Iowa City sem esforço aparente, sempre berrando histórias engraçadíssimas, contando como burlava a lei em cada cidade que possuía limites de velocidade estritos, repetindo milhares de vezes: “Esses porcos de merda nunca conseguiram me estrepar”. Quando rodávamos pelas proximidades de Iowa City, ele ligou a sinaleira e diminuiu a velocidade, para que eu saltasse, o que fiz, carregando minha mochila; ao perceber o sinal, o outro caminhão parou para me recolher, e assim, num piscar de olhos, lá estava eu mais uma vez numa espaçosa cabina elevada, preparadíssimo para avançar centenas de quilômetros noite adentro, e sentindo-me maravilhosamente bem. Esse novo caminhoneiro era tão louco quanto o primeiro e gritava tanto quanto aquele, e tudo o que eu tinha a fazer era me aconchegar e deixar rolar. Agora, sim, podia ver a silhueta de Denver agigantando-se à minha frente, como uma Terra Prometida, lá fora entre as estrelas, através das pradarias do Iowa e pelas planícies do Nebraska, e tive uma visão grandiosa de San Francisco mais adiante, duas noturnas pedras preciosas. Ele fincou o pé na tábua, contando histórias por algumas horas, até que numa cidade do Iowa, onde anos mais tarde Dean e eu fomos detidos sob suspeita de estarmos dirigindo um Cadillac roubado, ele dormiu no assento por algumas horas. E eu também dormi, mas antes dei um pequeno passeio ao longo de solitárias paredes de tijolos, iluminadas por uma única lâmpada, admirando a pradaria que brotava ao final de cada estreita esquina, e o cheiro do milho misturado ao orvalho da noite. Ele acordou num sobressalto. Lá fomos nós e, uma hora depois, entre o milharal esverdeado, surgiu à nossa frente a névoa cinzenta que recobre Des Moines. Ali ele quis tomar seu café da manhã e diminuir o ritmo, então decidi entrar direto em Des Moines, que ficava a uns seis quilômetros; peguei uma carona com dois caras da universidade local, e foi bastante estranho sentar numa caranga confortável e nova em folha e ouvi-los falar sobre seus exames, enquanto deslizávamos suavemente para dentro da cidade. Decidi dormir o dia
inteiro. Fui à ACM batalhar um quarto, não havia nenhum, por instinto perambulei até os trilhos de trem — e há milhões em Des Moines; — acabei despencando numa velha pensão sombria e vulgar, junto à oficina das locomotivas, e passei o dia inteiro dormindo numa grande cama branca, dura e limpa, com rachaduras sujas cavadas na parede, bem ao lado do meu travesseiro, e surradas cortinas amarelas que emolduravam a cinzenta paisagem ferroviária. Acordei com o sol rubro do fim de tarde; foi um dos momentos mais impressionantes de minha vida, o mais bizarro, pois simplesmente já não sabia mais quem era — estava a milhares de quilômetros de minha casa, temeroso e desgastado pela viagem, num quarto de hotel barato nunca antes avistado, ouvindo o silvo das locomotivas e o ranger das velhas madeiras do hotel, e passos anônimos que ressoavam no andar de cima, e todos aqueles sons melancólicos, e por quinze misteriosos segundos realmente já não sabia quem era. Não me apavorei; simplesmente eu me sentia como se fosse outra pessoa, um estranho a mim mesmo, e toda a minha existência fora apenas uma vida mal-assombrada, a vida vazia de um fantasma.  Eu estava no coração da América, meio caminho andado entre o leste da minha mocidade e o oeste de meus sonhos futuristas, e é provável que tenha sido exatamente por isso que tudo se passou assim, naquele entardecer dourado e insólito.
Mas já era tempo de cortar as lamentações e cair fora, então apanhei minha mochila, disse adeus ao velho recepcionista sentado ao. lado de sua escarradeira, e fui comer. Devorei outra torta de maçã com sorvete — estavam ficando cada vez melhores à medida que eu avançava dentro de Iowa, a torta crescia e o sorvete ficava ainda mais saboroso. Naquela tarde em Des Moines, para onde quer que olhasse, via inúmeros bandos de garotas lindíssimas — elas voltavam para suas casas depois das aulas —, agora eu não tinha tempo para pensamentos desse tipo, mas jurei que cairia na farra assim que chegasse a Denver. Denver! Carlo Marx já estava lá, Dean, também; e, claro, Chad King e Tim Gray, já que era a cidade natal deles; e também Marylou, e eu tinha ouvido falar de uma turma muito louca que incluía Ray Rawlins e Babe Rawlins, sua linda irmã loira; e as irmãs Bettencourt, duas garçonetes que Dean conhecia; e até Roland Major, um antigo colega com o qual eu me correspondia nos tempos da universidade, andava por lá também. Transpirando alegria antecipada, aguardava ansioso pelo meu reencontro com eles. Por isso, passei direto por aquelas lindas gatinhas: as garotas mais gostosas do mundo moram em Des Moines. Um cara com uma espécie de caixa de ferramentas sobre rodas, um caminhão recheado com todos os tipos imagináveis de ferramentas, que ele dirigia de pé como um leiteiro moderno, deu-me uma carona até o topo de uma colina, onde peguei imediatamente outra carona de um fazendeiro e seu filho, que iam para Adel, em Iowa. Nessa cidade, sob um olmo enorme nas proximidades de um posto de gasolina, fiz amizade com outro caroneiro, um nova-yorkino típico, irlandês que havia passado a maior parte de sua vida profissional dirigindo um caminhão dos Correios e Telégrafos, e que agora partia para uma vida nova ao lado de uma garota de Denver. Acho que ele estava fugindo de alguma coisa em Nova York, da lei provavelmente. Ele era o beberrão típico, com um narigão vermelho, moço, uns trinta anos, e normalmente logo teria me enchido o saco, caso eu já não estivesse preparado para qualquer espécie de amizade humana. Ele vestia um suéter surrado e calças largas, e não possuía nada que lembrasse uma mochila — apenas uma pasta de dentes e alguns lenços. Ele disse que a gente devia pedir carona juntos. Eu teria dito não, já que ele parecia péssima companhia para a estrada. Mas como estávamos ali encalhados, pegamos carona com um homem taciturno até Stuart, em Iowa, cidade na qual realmente atolamos. Paramos em frente ao guichê da estação ferroviária, esperando pelo tráfego que ia para o oeste até o sol se pôr, umas boas cinco horas, matando tempo, primeiro falando sobre nós mesmos, em seguida ele me contou umas sacanagens, depois ficamos apenas chutando seixos e dizendo todo tipo de bobagem. Aquilo nos encheu o saco. Peguei umas moedas e comprei cerveja; fomos a um velho saloon em Stuart e bebemos algumas. Lá, ele ficou tão bêbado quanto costumava ficar em sua caminhada noturna pela Ninth Avenue, voltando para casa, e berrou alegremente ao meu ouvido os sonhos sórdidos de sua vida. Até que gostei dele; não porque fosse um cara legal, como provaria mais tarde, mas porque se entusiasmava com tudo. Retornamos à estrada em meio à escuridão, e logicamente poucos carros passaram, e nenhum parou. Isso se prolongou até as três da manhã. Gastamos um tempo enorme tentando dormir num banco duro e frio da estação ferroviária, mas o telégrafo tilintou loucamente a noite inteira, os enormes trens de carga fizeram ruídos estrondosos, e a gente não conseguiu relaxar. O pior é que nem ao menos sabíamos saltar para dentro dos trens em movimento, nunca havíamos feito isso antes, também não imaginávamos se eles estavam indo para o leste ou para o oeste, nem tínhamos como descobrir, e tampouco entramos num acordo se seria melhor saltar num vagão aberto, num fechado ou num vagão refrigerado; portanto, descartamos esse plano. E assim, quando o ônibus para Omaha passou, pouco antes do amanhecer, entramos nele e nos misturamos aos passageiros adormecidos. Paguei minha passagem, e a dele também. Chamava-se Eddie. De alguma forma, ele me fazia lembrar o sujeito casado com minha prima do Bronx.
Acho que foi por isso que me liguei nele. Afinal, era como se eu estivesse junto com um velho amigo, um cara simpático e sorridente, com o qual eu podia ficar dizendo bobagens horas a fio. Chegamos em Council Bluffs ao amanhecer; consegui abrir um olho. Durante o inverno inteiro, eu estivera lendo sobre as grandes festas que detinham os vagões, ali, antes de eles partirem em direção às trilhas do Oregon e de Santa Fé, isso no tempo dos pioneiros, é claro; porque agora a cidade não passava de um subúrbio elegante, com chalés engraçadinhos construídos em duas ou três variações do mesmo estilo, alinhados sob o céu pálido de um amanhecer opaco. E então Omaha, e aí, meu Deus, vi o primeiro cowboy de minha vida, caminhando ao longo das paredes gélidas dos armazéns frigoríficos que vendem carne por atacado, com um chapéu descomunal e botas texanas; se não fosse pelo traje, pareceria um típico picareta da costa leste, recostado a um muro banhado pelo amanhecer. Saltamos do ônibus e deslizamos até o topo da colina, a extensa colina formada ao longo de milênios pelo poderoso rio Missouri, junto ao qual Omaha foi construída, e logo chegamos à zona rural, já com os polegares de prontidão. Pegamos uma carona curta com um fazendeiro rico, também descomunalmente enchapelado, e ele disse que o vale do Platte era tão soberbo quanto o vale do Nilo, no Egito, e assim que ele disse isso, avistei árvores exuberantes que serpenteavam ao longo do curso sinuoso do Platte, envoltas por esplêndidos campos verde jantes, e por pouco não acabei concordando com ele. Então, quando já estávamos em pé em outra encruzilhada solitária e o céu começava a ficar nublado, outro cowboy, este com um metro e noventa de altura e com um chapéu bem mais modesto, aproximou-se, perguntando se um de nós sabia dirigir. Claro que Eddie sabia; ele tinha carteira de motorista, e eu, não. O cowboy tinha dois carros, e desejava levá-los de volta para Montana. A mulher o aguardava em Grand Island, e ele queria alguém que dirigisse um dos carros até lá, quando então ela assumiria o volante. Daí em diante, eles iriam para o norte, e esse seria o limite de nossa carona com ele. Mas isso representava uns bons duzentos quilômetros para dentro do Nebraska e, lógico, embarcamos nessa. Eddie ia sozinho, o cowboy e eu o seguíamos, só que, assim que saímos dos limites da cidade, Eddie tascou pé na tábua, cento e quarenta quilômetros por hora, com um desembaraço fantástico.
— Puta merda! O que esse cara está fazendo? — gritou o cowboy, e saiu atrás dele, voando. Legal, de repente era como se fosse uma corrida. Cheguei a pensar que Eddie estava pensando em se mandar com o carro — e, pelo que sei dele, era exatamente isso o que ele pretendia fazer. Mas o cowboy colou nele e tocou a mão na buzina. Eddie diminuiu um pouco. O cowboy buzinou novamente, para que ele parasse no acostamento. — Porra, garoto, desse jeito você vai gastar meus pneus. Será que não dá pra ir com mais calma?
— É sério mesmo? Eu estava realmente a cento e quarenta? — disse Eddie com uma cara de santo. — Nem percebi, essa estrada é tão suave... — Trate de dirigir mais devagar, senão a gente não chega inteiro em Grand Island.
— Pode crer. — E nós reiniciamos a jornada. Eddie se acalmou, e deve ter ficado até um pouco sonolento. E assim, rodamos cerca de duzentos quilômetros através do Nebraska, sempre acompanhando o Platte tortuoso, com seus exuberantes campos gramados. Durante a Depressão — disse-me o cowboy —, eu costumava saltar nos trens de carga pelo menos uma vez por mês. Naquele tempo, havia centenas de homens nos vagões abertos, e até mesmo em cima dos vagões de carga, e não eram apenas os vagabundos, havia gente de todo tipo — estavam todos desempregados —, iam de um lugar pro outro, a maioria sem rumo definido. Era assim por todo o oeste. Naquela época, os guarda-freios não nos incomodavam jamais. Não sei como é hoje. Nebraska, que lugarzinho inútil! Na metade dos anos 30, isso aqui não passava de uma enorme nuvem de poeira, que se estendia tão longe quanto os olhos pudessem ver. Respirar era impossível. O chão era preto. Eu estava aqui, naqueles dias mesquinhos. Por mim, poderiam devolver Nebraska para os índios. Odeio esse lugar mais do que qualquer outra região do mundo. Atualmente, moro em Missoula. É o paraíso terrestre, vá lá e confira. — Quando ele cansou de falar, adormeci. Para dizer a verdade, o papo dele até que era interessante.
Paramos na estrada para comer. O cowboy foi consertar um estepe, e Eddie e eu nos sentamos numa espécie de bar-restaurante caseiro. Ouvi uma gargalhada espalhafatosa, a maior gargalhada do mundo, e aí entrou um habitante típico do Nebraska, um fazendeiro vestido de couro cru da cabeça aos pés, acompanhado por seu bando de rapazes; a zoeira que eles faziam ecoava pelas planícies, recobrindo inteiramente aquele mundo descolorido onde eles viviam. Quando ele ria, todo mundo ria junto. Ele parecia não ter a menor preocupação na vida, e tratava todo mundo com o maior respeito. Disse para mim mesmo: uau, escute só a risada desse cara! O oeste é isso aí, e eis-me aqui em pleno oeste. Seus passos retumbavam dentro do bar enquanto ele chamava por Maw; ela fazia a torta de cereja mais deliciosa do Nebraska, e é claro que eu já havia devorado uma, depois de cobri-la com uma montanha de sorvete. — Maw, arranje-me o que comer antes que eu comece a devorar a mim mesmo cru, ou cometa alguma besteira semelhante. — Ele se atirou num banco, às gargalhadas. — E cubra tudo com feijão, ah, ah, ah! — Era o verdadeiro espírito do oeste, sentado justamente ali a meu lado. Oh, realmente eu queria conhecer sua vida nua e crua, descobrir o que ele estiver a fazendo todos aqueles anos, além de gozar e gargalhar. Uau, que energia, disse com meus botões, e aí o cowboy voltou e nos mandamos para.Grand Island. Chegamos lá num piscar de olhos. Ele encontrou sua mulher, e os dois se mandaram para seu destino, aonde quer que ele fosse, e Eddie e eu retornamos à estrada. Pegamos uma carona com dois garotões — uns vaqueiros, caipiras adolescentes que dirigiam um calhambeque todo remendado —, e eles nos deixaram mais adiante em algum lugar, sob uma garoa fina. Aí, um velho que não disse palavra — e só Deus sabe por que ele nos apanhou — nos levou até Shelton. Então Eddie prostrou-se na estrada, sem ânimo, em frente a um grupo de pequenos índios omahas, mirrados, com os olhos fixos e vazios, acocorados, sem ter para onde ir ou o que fazer. Os trilhos do trem passavam do outro lado da estrada, junto a uma caixa-d’água onde se lia: SHELTON. — Puta que o pariu — disse Eddie, surpreendido. — Já estive nessa merda de cidade antes. Foi há um tempão atrás, durante a guerra, era de noite, tarde da noite, todos dormiam; saí do trem para fumar, e ali estávamos nós em meio a nada, na mais completa escuridão, e eu olhei para o alto e vi esse nome SHELTON escrito nesta caixa d’água. Íamos para o Pacífico, todo mundo roncava, aquele bando de bundas moles; nós paramos apenas por alguns instantes, para abastecer ou algo assim, e logo seguimos adiante. Puta merda, e agora aqui estou eu em Shelton outra vez! Odeio esse lugar desde sempre! — E ali estávamos nós, encalhados em Shelton.
Por algum motivo, como em Davenport, em Iowa, todos os carros que passavam eram carros de fazendeiros ou, de vez em quando, um carro de turistas, o que é ainda pior, pois neles viajam velhos que dirigem enquanto suas esposas consultam mapas e apontam pontos turísticos, ou então, recostadas em bancos reclináveis, olham para tudo com aquela cara de desconfiança. A garoa aumentou, e Eddie ficou gelado; ele vestia pouquíssima roupa.
Peguei uma camisa de flanela xadrez no meu saco de viagem, e ele a vestiu. Sentiu-se um pouco melhor. Eu já estava resfriado. Comprei umas pastilhas para a garganta numa minúscula loja indígena. Fui a um ínfimo posto de correio, de dois metros por quatro, e enviei um postal barato para minha tia. Retornamos à estrada opaca. Ali, bem à nossa frente, na caixa-d’água, estava escrito: SHELTON.
O ônibus para Rock Island passou zunindo por nós. Pudemos ver as caras dos passageiros do Pullman, num relance súbito. O trem assobiou pelas planícies, seguindo também na direção dos nossos desejos. Então, começou a chover mais forte.
Um sujeito alto e esguio, com um chapéu de porte médio, parou seu carro no lado oposto da estrada e caminhou em nossa direção; parecia o xerife. Silenciosamente, preparamos nossas desculpas. Ele se aproximou vagarosamente. — Ei, rapazes, vocês estão indo para algum lugar específico, ou estão apenas curtindo a estrada? — Não entendemos bem a pergunta. Era digna de se pensar em casa.
— Por quê?
— O negócio é o seguinte: tenho um pequeno parque de diversões a poucos quilômetros daqui e estou precisando de garotos que estejam a fim de trabalhar e ganhar um dinheiro fácil. Temos uma concessão para a roleta, e outra para o jogo de argolas —, sabe como é, aquelas que você atira e ganha o objeto no qual ela se encaixa. Vocês estão dispostos a trabalhar para mim? Pago trinta por cento de cada bolada...
— Mais cama e comida?
— Cama, sim, comida, não. Vocês terão que comer na cidade. Vamos viajar um pouco por aí. — Refletimos por uns instantes. Estávamos um pouco intimidados, não sabíamos bem o que responder, mas, para dizer a verdade, eu não estava nem um pouco interessado naquela história de parque de diversões. Estava louco para chegar a Denver e encontrar a rapaziada. Disse: — Não sei, cara. Estou a fim de cair fora o mais rápido possível, e acho que não vai dar tempo. — Eddie repetiu praticamente a mesma coisa, o velho gesticulou displicentemente, perambulou de volta para seu carro e se manejou. E foi isso. Nós rimos por uns instantes, e ficamos imaginando como seria aquela transação. Tive visões de uma noite sombria, e poeirenta, esparramada sobre, as planícies, e as caras das famílias do Nebraska desfilando à minha frente, com crianças rosadas que olham para tudo com espanto e admiração, e eu sei que me sentiria o maior calhorda do mundo se tivesse que lográ-los naqueles malditos caça-níqueis. Rodas-gigantes que giram na escuridão da planície e, pelo amor de Deus, a música entristecida dos carrosséis que ecoa pelas montanhas, e eu ansioso para chegar logo a meu destino, tendo de dormir numa cama de aniagem em algum vagão dourado. Eddie acabou se revelando um companheiro um tanto velhaco para a estrada. Uma geringonça antiga, engraçada, cruzou por nós.. Era dirigida por um velho, e fora fabricada com uma espécie de metal que lembrava o alumínio, acho; mais parecia uma caixa metálica sobre rodas – pretendia ser um trailer, sem dúvida; mas um trailer estranho e maluco, feito em casa no Nebraska. Ia tão devagar que parou. Corremos até lá a mil por hora; o velho disse que só podia levar um de nós. Sem uma palavra sequer, Eddie se jogou para dentro da caixa metálica e sumiu lentamente de vista — e, ainda por cima, com minha camisa de flanela xadrez. Porra, que dia de sorte, joguei um beijo de despedida para a camisa, de qualquer maneira ela tinha apenas um valor sentimental. Voltei à esperar em Shelton, aquela cidade de merda, por um longo, longo tempo, muitas horas mesmo, e temi que a noite chegasse repentinamente, mas, na verdade, apesar de já estar um pouco escuro, ainda era cedo. Denver, Denver, como, quando, de que maneira eu finalmente chegaria em Denver? Já estava quase desistindo de ficar na estrada, e planejava uma chegada ao café mais próximo, quando um carro quase novo, dirigido por um rapagão, parou para mim. Corri como um louco.
— Para onde você está indo?
— Para Denver.
— Bem, posso levá-lo por duzentos quilômetros.
— Grande, cara, grande! Você acaba de me salvar a vida.
— Eu também costumava pegar carona, por isso sempre dou uma força pra rapaziada, quando posso.
— Eu faria o mesmo, se tivesse um carro.
E nós continuamos conversando, ele me falou sobre sua vida, que não era das mais interessantes, e eu adormeci um pouco, só acordando nos arredores de Gothenburg, onde ele me deixou.




Capítulo 2 - On the Road



2

Em julho de 1947, depois de economizar cinqüenta dólares de meu velho seguro de veterano, eu estava pronto para ir à costa oeste. Meu amigo Remi Boncoeur havia escrito uma carta de San Francisco, dizendo que eu deveria ir para embarcar com ele num navio que daria a volta ao mundo. Ele jurava que conseguiria me arranjar um emprego na casa de máquinas. Respondi-lhe que já estaria satisfeito com qualquer velho cargueiro, contanto que pudesse curtir um longo cruzeiro pelo Pacífico e voltasse com grana suficiente para me sustentar na
casa de minha tia enquanto terminasse meu livro. Ele falou que possuía uma cabana em Mill City, e que lá eu teria todo o tempo do mundo par a. escrever, enquanto a gente aguardasse a encheção de saco burocrática de antes da viagem. Ele estava vivendo com uma garota chamada Lee Ann; disse que ela era uma cozinheira maravilhosa, e que tudo iria dar certo. Remi era um velho colega de escola preparatória, um francês criado em Paris, e era realmente muito louco — nessa época, eu não imaginava até que ponto! Portanto, ele aguardava minha chegada para dentro de dez dias. Minha tia estava inteiramente de acordo com minha viagem para o oeste; ela achava que isso me faria bem, eu havia trabalhado duro durante o inverno, e ficara demais dentro de casa; ela não reclamou nem mesmo quando eu lhe disse que teria que pegar carona. Tudo o que ela esperava era que eu voltasse inteiro. E assim, certa manhã, deixando meu grosso manuscrito incompleto sobre a escrivaninha, e dobrando pela última vez meus confortáveis lençóis caseiros, parti com meu saco de viagem, no qual poucas coisas fundamentais haviam sido arrumadas, caindo fora em direção ao oceano Pacífico com cinqüenta dólares no bolso.
Eu divagara muito tempo olhando para mapas dos Estados Unidos durante meses, em Paterson, e até lera livros sobre os pioneiros, e esses nomes instigantes como Platte e Cimarron e tudo o mais, e, no mapa rodoviário, havia uma longa linha vermelha chamada Rota 6, que conduzia da ponta do cabo Cod direto a Ely, em Nevada, e daí mergulhava em direção a Los Angeles. Simplesmente vou ficar na 6 o tempo inteiro até chegar a Ely, disse a mim mesmo, e confiantemente dei no pé. Para pegar a Rota 6, eu deveria subir até Bear Mountain. Sonhando com as curtições de Chicago, Denver e finalmente de San Fran, peguei o metrô da Seventh Avenue até o fim da linha, na 242nd Street, e lá tomei o tróleibus para Yonkers; do centro de Yonkers, um novo tróleibus me conduziu até os limites da cidade, na margem leste do rio Hudson. Se você jogar uma rosa na misteriosa nascente do rio Hudson, em Adirondacks, imagine todos os lugares pelos quais ela viajará, antes de desaparecer no mar para sempre — pense no sublime vale do Hudson! Meu polegar apontava montanha acima. Cinco caronas esparsas me conduziram à ambicionada ponta de Bear Mountain, onde a Rota 6 penetra em curva, depois de deixar a Nova Inglaterra. Começou a chover torrencialmente assim que fui deixado ali. Era uma zona montanhosa. Depois de cruzar o rio, a Rota 6 fazia um enorme retorno e desaparecia na imensidão. Não só não havia tráfego, como também chovia a cântaros, e eu não tinha onde me abrigar. Tive que correr para debaixo de alguns pinheiros, o que não chegou a ser uma idéia genial; comecei a chorar, praguejar e esmurrar minha própria cabeça por ser tão estúpido. Estava a uns sessenta quilômetros ao norte de Nova York, e, durante todo o caminho, preocupava-me o fato de, naquele meu primeiro grande dia, estar avançando apenas para o norte, ao invés de seguir para o oeste dos meus sonhos. Agora, ali estava eu, encalhado justamente no limite mais setentrional daquela viagem obsessiva. Corri uns quinhentos metros até um posto de gasolina
abandonado, construído num elegante estilo inglês, e parei sob um telhado gotejante. Muito acima de minha cabeça, a hirsuta e imponente Bear Mountain enviava trovões que gelavam minha alma. Tudo o que eu podia distinguir eram árvores nebulosas e a sombria vastidão que se elevava aos céus. — Que porra estou fazendo aqui em cima? — xinguei, implorando por Chicago. — Justamente agora eles estão numa boa, curtindo os maiores baratos, e eu não estou lá, quando vou chegar? — essas coisas. Milagrosamente, um carro parou no posto abandonado; o homem e as duas mulheres que estavam dentro queriam consultar um mapa. Aproximei-me no ato e gesticulei na chuva; eles se questionaram; claro que eu parecia um maníaco, com meu cabelo todo molhado e os sapatos encharcados. Meus sapatos, que perfeito idiota sou eu, eram sandálias mexicanas de corda trançada, absolutamente impróprias para a cruel noite chuvosa da América, para a noite voraz da estrada. Eles me deixaram entrar e me levaram de volta para Newburgh, o que aceitei como uma alternativa melhor do que ficar detido a noite inteira na desolada Bear Mountain. — Além disso — disse o homem —, praticamente não há tráfego pela 6. Se você realmente quer ir para Chicago, seria melhor pegar o Túnel Holland em Nova York, e seguir em direção a Pittsburgh — e eu sabia que ele estava certo. Era meu sonho que ia por água abaixo, a idéia idiota de que seria simplesmente maravilhoso seguir uma única e grande linha vermelha através da América, ao invés de tentar várias estradas e rotas.
Em Newburgh tinha parado de chover. Caminhei até o rio, e tive que voltar para Nova York num ônibus junto com uma delegação de professores primários que retornavam de um fim de semana nas montanhas — lereré, lereré, blá, blá, blá, e eu simplesmente puto comigo mesmo, lamentando todo o dinheiro que tinha gasto, e louco para pegar o rumo oeste, o que, na verdade, tinha tentado fazer durante o dia e a noite inteiros, viajando para cima e para baixo, para o norte e para o sul, como algo que não consegue dar a partida. Jurei que no dia seguinte estaria em Chicago, e tive certeza absoluta disso, tanto que decidi pegar um ônibus até lá, mesmo que isso significasse gastar quase todo o meu dinheiro, mas não queria nem saber, contanto que estivesse em Chicago no dia seguinte.